Eu morri há um mês, mas só estou a escrever sobre a minha morte agora...era uma manhã normal de sexta-feira, dia 28 de Outubro de 2022, tinha acordado...tarde e desmotivada como sempre, e chamaste-me mãe, estavas sentada na beira da cama no teu quarto...vi que estavas mal mas como tinhas tantas crises e ficava sempre tudo bem achei que era só mais uma, pediste-me um iogurte nem conseguiste comer, eu tinha uma entrevista de emprego online dali a pouco e perguntei se a poderia fazer e se estavas bem, disseste que sim, querias que eu arranjasse trabalho, fechei a porta do quarto e fiz a maldita entrevista (que após mais uma em nada deu, não fiquei com o emprego)...entretanto o pai chega a casa, e como sempre, com a mágoa de te ver assim o seu comportamento traduziu-se em nervosismo, quase que como, chateado contigo por estares doente...eras uma doente cardíaca, mas sempre acompanhada, até no dia anterior te tinham feito análises e ido ao cardiologista...tinhas tido alta do hospital há pouco mais de uma semana...apesar de no dia anterior não teres conseguido comer...aparentava estar tudo controlado. O teu coração tinha melhorado substancialmente...disseste-me...disseram os médicos...mas haviam problemas que começaram a aparecer derivado à medicação que tomavas para a arritmia, especialmente o Cordoran, que como dizias "era uma bomba"...eu dizia para o parares de tomar mas dizias que era os médicos que mandavam tomar não havia alternativa...eu confiei nos médicos afinal não sei nada de medicina, apesar de um dos médicos como disseste ser contra a medicação...esse medicamento aliado a outros e outros problemas que tinhas deterioram-te os rins e o fígado...muito rápido...demasiado rápido...no entanto, acredito que os médicos tudo fizeram para te salvar, pois investiram 10 mil euros num pacemaker que durou meses e 25 mil euros num outro que apenas durou semanas...o pai chamou a saúde 24, e os bombeiros vieram buscar-te a casa porque nem conseguias descer as escadas para ir para as Urgências...estavas em hipoglicemia, 20, quando abaixo de 30 é coma, desconhecia, como resistente que és aguentavas-te, falavas, estavas consciente...ninguém sabe como, os bombeiros admiraram-se...no entanto o teu coração estava bom, e a tensão arterial e batimentos cardíacos também...achei mesmo que ias ficar bem, o meu medo é que o teu coração estivesse mal. Os bombeiros colocaram-te numa cadeira de rodas, pediste-me um robe rosa ao qual me abraço todas as noites a dormir pois foi a última roupa que usaste, e uns chinelos da Minie...que a minha irmã te deu, os bombeiros pediram para te colocar uma máscara e tú disseste que não era preciso, mas os bombeiros disseram que sim nos serviços de saúde tem de se usar, eu coloquei a máscara...à medida que a bombeira e bombeiro te levavam a descer as escadas...pedias desculpa pelo trabalho que estavas a dar...tão frágil, tão querida, tão pura...desci as escadas contigo, antes de entrares na ambulância despedi-me de ti com um abraço rápido...e disse-te " Vá até logo!"., e tú disseste "Até logo!" Tanto eu como tú sentíamos, pensávamos que iria correr tudo bem, senão a nossa despedida teria sido diferente...terias pedido para ligar à minha irmã, terias falado comigo como das outras vezes em que foste operada e dizias que não sabias se irias voltar do hospital...odiava quando dizias isso, e dizias isso tantas vezes, e voltavas sempre...desta vez não poderia ser diferente...não podia ser!
Perguntei ao pai se ele preferia que eu fosse ao hospital, ele disse que não, para eu ir para o meu curso à noite...eu como achei que iria estar tudo bem e queria pensar noutras coisas que não negativas fui para Lisboa para o meu curso à noite, enquanto o pai esperou até às 22horas no hospital por notícias, e disseram que ficaste internada no serviço de observação, a visita seria dia 29 de Outubro às 10horas. Estava a par disto e descansei porque já tinhas passado por tantos internamentos...saí do curso, sentia-me triste, os colegas repararam, mas eu estava optimista e disse "a minha mãe costuma ser internada, vai correr tudo bem". Não me lembro de ter tido um mau pressentimento, estava apenas triste, mas tirei os maus pensamentos da minha cabeça...fiz a viagem de volta para casa, o autocarro parou ao pé do hospital como é costume, olhei para as luzes e chaminés do hospital e disse "Até amanhã mãe". Cheguei a casa perguntei ao pai por novidades tuas, a mesma da mensagem, ficaste internada sobre observação, visita amanhã de manhã mais nada. Fiz um chá, para me distrair ainda vi coisas para rir na internet, e consegui rir, tenho raiva agora...como poderia ter rido nessa noite? mesmo não sabendo...como não senti? costumo ter insónias mas as desse dia eram muito fortes...tomei 3 medicamentos para dormir e ouvi uma meditação para dormir que era "desejar bem aos outros"...adormeci.
Acordei cedo, 08h30 dia 29 de Outubro, recebo uma chamada atendo ao primeiro toque, era do hospital, alguém me disse "os médicos querem falar com os familiares"...achei que era para te darem alta...disse ao pai e ele disse "Oh Deus do céu!", tento reconfortá-lo ". Algo me diz para procurar o terço no meu quarto, levo-o na minha mão e vou a rezar, coisa que quase nunca faço, pais nossos e avés marias...o pai já está no carro, eu entro...nisto está a dar uma música que cantavas sempre quando era pequena...era uma música triste...fazia-me chorar, pedia sempre parares de cantar..."Cantar de Emigração", de Adriano Correia de Oliveira...
"Este parte, aquele parte
e todos, todos se vão.
Tens em troca órfãos e órfãs
Tens campos de solidão.
Tens mães que não têm filhos
Filhos que não têm pai.
Coração que tens e sofre
Longas ausências mortais.
Viúvas de vivos mortos
Que ninguém consolará."
Como assim? Esta música não é de rádio, nunca ouvi esta música na rádio! Qual a probabilidade de estar a dar esta música na rádio no momento em que vou para o hospital saber de ti??? Lembrei-me do dia em que soube antes de me dizerem que o avô Galeia morreu porque estava a dar na TV um filme inspirado no livro de Ernest Hemingway "O Velho e o Mar" e a personagem só me lembrava dele ( Universo Paralelo: Ao meu avô materno José dos Santos Amaro (j-myuniverse.blogspot.com)...por isso quando ouvi o pai ao telefone pressenti, ele nem me precisou de dizer, desfiz-me em lágrimas...e desta vez pensei...será um sinal? Não...não pode ser...neguei neguei neguei...pedi ao pai para desligar essa música horrível e ele desligou a rádio...
Entrámos no hospital, enquanto fazia tempo não resisti a ir ao telemóvel e fui a uma aplicação de tarot, tirei a carta para o dia de hoje, saiu o 10 de Espadas - a carta da devastação, perda e dor..."é só uma app estúpida" pensei...entretanto saem dois médicos, uma médica e um médico das urgências...não vi o semblante deles estavam os dois de máscara e eu e o pai também..."Bom Dia" e nós repetimos "Bom Dia", levaram-nos para uma sala, fecharam a porta. Entretanto sinto a voz de nervosismo do médico..."Não tenho boas notícias!", começou, sentei-me, comecei a sentir o Mundo a cair aos meus pés...mas continuei a negar...estavas vivas, tinhas de estar, mas o caso era grave...o médico continuava, senti que sensível ao início da nossa tormenta, mas teria de dar a notícia "teve duas paragens cardíacas...", comecei num pranto...o médico acrescentou "à primeira conseguimos reanimar....mas à segunda...não...faleceu ontem às 23h04!", eu só gritava de dor "NÃO! NÃO PODE SER!"...vi a médica emocionar-se também...deve ser duro dar notícias destas diariamente aos familiares...tive coragem de perguntar, ainda em negação..."mas como? ela estava bem do coração? o que aconteceu?"..."foi uma septicemia derivado de uma infecção urinária!", achei que não fazia sentido, o teu mal era do coração...mas aparentemente foste da cura e não da doença...ainda não pedi os documentos da ocorência, mas disseram-me (médicos inclusive) que era pouco tempo para apanhares uma septicemia com as bactérias do hospital e a septicemia é uma infecção generalizada do sangue, sem cura, aparentemente os teus orgãos teriam entrado em falência já na noite anterior em que te beijei e abracei duas vezes enquanto dormias e te disse "amo-te muito mãe, vais ficar boa", arrependo-me tanto de não ter "roubado" o lugar do pai que dormia na sala e dormir agarrada a ti, teria sido...a nossa última noite...e saberias mais ainda o quanto te amo e amei mas nunca demonstrei da forma carinhosa que tu merecias porque sempre fugi de mostrar os meus melhores sentimentos, sempre fugi do amor...qualquer tipo de demonstração de amor...
Nisto os médicos pedem desculpa, mas têem de voltar ao serviço, afinal de contas, pela minha mãe já não podem fazer nada e há todo um dia de trabalho pela frente a tentar salvar pessoas, ou melhor deverei dizer...adiar a sua morte? Dão-nos os pêsames, sentidos eu sei, fecham a porta da sala e dizem "podem ficar o tempo que quiserem". Olho para o meu pai, está em choque...ainda zangado contigo por teres partido, ele sempre se preocupou contigo e se sacrificou no trabalho e tempo livre para te acompanhar nas tuas consultas, esperou horas infindáveis por ti no hospital...ele estava zangado contigo por teres estado doente, zangado por teres partido...falava com uma aparente raiva quando no fundo, hoje sei, que é uma dor profunda "eu avisei-a tanta vez!"...abracei-o...não o abraçava há anos...agora era só eu e ele...
Com tanto pesar partiste no mesmo hospital onde me deste vida a mim e à minha irmã, com tanta mágoa, partiste no dia 28 de Outubro quase dia 30 de Outubro...o mesmo dia em que há 7 anos, o meu avô Manuel partiu...no mesmo hospital (Universo Paralelo: Ao meu querido avô Manuel (j-myuniverse.blogspot.com)...tão triste que esse seja o hospital de alegrias e tristezas de tanta gente, inclusive...da minha.
O pai vê os bombeiros que te vieram buscar a casa...dá-lhes a infeliz notícia, eles ficam surpreendidos e tristes...até para alguém que só te viu uma vez marcaste e é tão estranho uma pessoa estar cá um dia e depois nunca mais...
O pai entra num modo de choque racional e não quer contar a ninguém, vai directo para a funerária...a tua amiga Flor junta-se a nós, parece um filme...e eu estou a assitir...falam de ti como um corpo..."o corpo é para ser cremado?", lembro-me entre várias conversas mórbidas que tiveste comigo que não querias ser cremada...e digo que não....tú não serás queimada, como aprendeste na Igreja, Jesus foi sepultado e ressuscitou de corpo e alma e assim diz que acontecerá com os justos aquando da Revelação ou Apocalipse acontecer, todos ressuscitarão e viverão no paraíso porque no fim "Ele enxugará dos seus olhos toda lágrima. Não haverá mais morte, nem tristeza, nem choro, nem dor, pois a antiga ordem já passou".