sexta-feira, 21 de setembro de 2012
A verdade sobre crise, dívida, FMI e austeridade
Livro: A TROIKA E OS 40 LADRÕES, de Santiago Camacho
As políticas neoliberais aplicadas sem receios e a ganância de alguns conduziram-nos a uma crise económica da qual ninguém parece saber como escapar.
São os cidadãos comuns, aqueles que não tiveram culpa de todo este dano, os que menos beneficiaram e os que mais estão a sofrer, os que têm de pagar as suas consequências, não apenas de maneira indirecta através da deterioração da sua qualidade de vida, do medo, do desaparecimento de postos de trabalho, da dificuldade para obter crédito, e nos piores casos, do despejo e da ruína, mas também financiando com o dinheiro dos seus impostos os mesmos bancos que nos conduziram a toda esta lamentável situação.
E, como é óbvio, os pressupostos do Estado não se podem esticar, haja o dinheiro que houver, e entregam-se milhares de milhões para financiar os bancos, e outras instituições, as dos serviços públicos e sociais, terão de sofrer severos cortes. E assim encontramos o amargo paradoxo de que uma crise provocada pela liberalização se converte, como por arte de magia, na desculpa perfeita para que as políticas avancem ainda mais para o liberalismo implacável [..]. Encontramo-nos numa época de desemprego em massa, e em vez de se reanimar os esforços públicos para criar emprego, recita-se com cada vez mais convicção o mantra da austeridade, na qual a despesa governamental e os programas sociais são cortados até ficarem no mínimo que se consegue tolerar a população antes de chegar a revolta.
Para o justificar, é-nos dito que o extraordinário esforço público realizado durante a primeira parte da crise serviu na realidade para evitar, ou pelo menos mitigar, o desastre económico e financeiro, mas criou um grave desequilíbrio dos cofres públicos que obrigou a adoptar as actuais medidas de austeridade, sobretudo na União Europeia. Manter as políticas de austeridade, ainda que à custa de sofrer com os problemas que se possam gerar a curto prazo - sobretudo o atraso na reactivação económica- é, a única via para assegurar, a longo prazo, uma saída sólida e duradoura para a crise. No entanto, é sempre a obstinada realidade que acaba por colocar as coisas no seu devido lugar. As economias em crise estão ainda longe de enveredar pelo caminho do crescimento, e o estabelecimento de uma política de retrocesso e austeridade da despesa e do investimento público foi um novo golpe, devastador, para as economias que lutavam para se levantar.
Venderam-nos esta doutrina afirmando que não havia nenhuma alternativa - que tanto os resgates como os cortes da despesa eram necessários para satisfazer os mercados financeiros - e afirmando também que a austeridade fiscal criar a emprego. Mas o certo é que se trata de mais uma mentira em toda a História. Nos sítios onde se praticaram as políticas de austeridade orçamental, a crise não apenas não diminuiu, como foi agravada com taxas de desemprego mais elevadas e umas substancial estagnação do crescimento.
[..]A Grécia viu-se empurrada pelas suas medidas de austeridade para uma depressão cada vez mais profunda; e essa depressão, não por falta de esforço por parte do governo grego, foi motivo para que através de um relatório secreto enviado aos dirigentes europeus se chegasse à conclusão que o programa posto em práctica na Grécia é inviável.
Quem lê crónicas sobre a crise financeira, ou vê adaptações cinematográficas como o excelente Inside Job , saberá que a Islândia era supostamente o exemplo perfeito de desastre económico: esse país que o FMI dava como exemplo a seguir e que acabou completamente arruinado, soterrado nos escombros de uma banca cancerígena que converteu a ilha num imenso hedge fund e que deixou uma dívida equivalente a todo o PIB de 8 anos e 6 meses. Os seus banqueiros fora de controlo carregaram o país com dívidas enormes e ao que parece deixaram a nação numa situação desesperada. Enquanto todos os outros resgataram os banqueiros e obrigavam os cidadãos a pagar o preço, a Islândia deixou que os bancos se arruinassem e, na realidade, ampliou a sua rede de segurança social.
A Islândia deu início a uma ambiciosa reforma constitucional que, pela primeira vez na História do Mundo, é fruto de um processo de democracia directa, à margem dos partidos.
Que a solução que se propõe para a crise seja aprofundar ainda mais as políticas que:
1) nos conduziram a ela
2) as que fazem que os que têm menos culpa têm, os cidadãos, sofram as consequências mais terríveis é algo que acrescenta infâmia ao oprobório, uma proposta que responde à tentativa de debilitar as protecções sociais, reduzir a progressividade dos impostos e diminuir o papel e dimensões do governo, ao mesmo tempo que deixa toda uma série de interesses estabelecidos tão pouco afectados quanto possível.
Situações como as que geraram as crise económica fizeram com que se começasse a falar de crimes económicos contra a Humanidade. A nível macroecómico, este conceito foi usados nos debates sobre políticas de ajuste estrutural promovidas pelo FMI e pelo Banco Mundial durante as décadas de 1989 e 1990, que acarretaram gravíssimos custos sociais para as populações de África, América Latina, Ásia e Europa de Leste. Muitos analistas assinalaram estes organismos, as políticas que patrocinaram e os economistas que as conceberam como responsáveis, especialmente o FMI:
Para Shoshana Zuboff, antiga professora de Harvard Business School que publicou um artigo publicado no Business week a 20 de Março de 2009 com o título "Wall Street's economic crimes against humanity" há responsáveis, e são pessoas e instituições concertas: são aqueles que defenderam a liberalização sem controlo dos mercados financeiros; os executivos e as empresas que beneficiaram com o excesso do mercado durante o boom financeiro; aqueles que permitiram as suas prácticas e aqueles que podem agora sair incólumes e fortalecidos, com mais dinheiro público, a troco de nada. Eles são responsáveis pelo facto de milhões de famílias terem perdido as suas casas, milhões de trabalhadores terem ido para o desemprego, mais milhões aumentam a legião de pobres, o número de pessoas com fome aumenta até ultrapassar os 1000 milhões...têm nome e apelido ou razões sociais.
Na Argentina existe um precedente, um tribunal criado para identificar num registo especial as vítimas dos delitos económicos cometidos durante a ditadura [...]Para além deste exemplo pontual,não existe nenhuma norma nem costume nacional ou internacional que reprima como crimes contra a Humanidade os delitos com motivação económica.
Estamos perante o aparecimento de uma Nova Ordem Mundial, perante uma transformação do Estado tal como o conhecemos associado às nações. Não desapareceram os Estado-nações, mas é evidente que estão debilitados e já não têm a capacidade de resposta como dantes.
Como é possível se não através de sugestões de, por exemplo, os burocratas do Banco Central Europeu fazerem com que os governos estabeleçam à pressa e sem consultar a sua população, como aconteceu por exemplo em Espanha, medidas tão graves como uma reforma constitucional que implica de facto limitar a soberania do Estado? Como é que é possível que o «mercado», essa entidade amorfa, sem rosto, sem sede, sem ninguém a quem reclamar, mas tão poderosa, possa pôr de joelhos presidentes de Governo para destruir o Estado de bem-estar e continuar a drenar recursos públicos para seu próprio benefício?
O estado- nação, enquanto conceito, fica momentaneamente débil, ao ponto de ser cada vez menos capaz de regular a sociedade e é-nos imposto uma nova ordem mundial sem qualquer controlo democrático.
Uma figura sobre a qual será conveniente reflectir nesta situação é a do criminoso de Guerra Adolf Eichman, julgado em Jerusalém há 45 anos. Durante o julgamento que estremeceu o Mundo, a Humanidade enfrentou pela primeira vez o aparecimento de um novo tipo de criminoso, participante naquilo que poderíamos denominar «massacre administrativo». Nunca empunhou uma arma. Nunca deu uma ordem directa para assassinar ou torturar ninguém. Nunca viu uma execução. Ele era apenas um contabilista do inferno [...]O sofrimento que se instalou em muitas sociedades deste planeta deve-se aos consciencioso trabalho de muitos Adolf Eichmann. A crise económica não é o Holocausto, mas deriva da mesma supressão generalizada do critério moral.
O comportamento das nossas instituições financeiras é o mesmo em todo o Mundo: um sistema irresponsável empenhado em embolsar o lucro, banqueiros, correctores e especialistas financeiros dispostos a participar num modelo de negócio egoísta e que reserva a desumanização e o distanciamento para os que vivem fora da sua reduzida esfera, no mundo real. Como soldados na guerra, como assassinos em série, como os torturadores de qualquer regime ditatorial, a distância emocional, o despersonalizar dos seres humanos, convertendo-os em coisas, em cifras neste caso, facilitou a tarefa de operar exclusivamente em interesse próprio, sem os sentimentos habituais de empatia que nos alertam para a dor dos outros e nos definem como seres humanos. Nos julgamentos de Nuremberga os acusados defendiam-se dizendo que tinham cometido atrocidades que eram «legais», inclusivamente bem vistas pela sociedade. Não podiam ser julgados por cumprir a lei.
A escravidão da dívida
Desde o início da década de 1980 que o FMI e a sua organização irmã, o Banco Mundial, imposeram programas de ajuste estrutural em mais de 70 países em desenvolvimento que, se não constituem delitos contra a Humanidade, estão muito perto disso. Joseph Stiglitz, que deve saber do que fala como antigo economista-chefe do Banco Mundial, recorda que o FMI se envolveu numa série de programas de «assistência» que afectaram a maioria dos países de África. O resultado foi que os rendimentos desses países foram reduzidos numa média de 23%. No mundo desenvolvido, isso teria sido uma catástrofe. Em África, onde os rendimentos apenas dão para subsistência é um holocausto.
As ajudas ao desenvolvimento passaram de ser precisamente isso, uma ajuda, para se converter num negócio extremamente rentável.
Um exemplo disso é o que aconteceu no Brasil: entre 1985 e 1987, o FMI arrecadou deste país16 800 milhões de dólares de lucro líquido sobre o dinheiro que tinha emprestado
A participação do FMI na crise económica de um país permite que capital estrangeiro se apodere do mercado interno, reforce o seu domínio sobre a banca nacional e aproprie-se dos activos produtivos mais rentáveis a preço de chuva.
O FMI é uma fonte de enormes lucros para bancos como o Goldman Sachs (um dos principais beneficiários dos resgates financeiros), a partir dos tais resgates internacionais.
Outra grande potência que também mordeu o isco do FMI é a Rússia que desde então vive imerso numa armadilha de endividamento. O economista russo Boris Kagarlitski, numa declaração diante do Congresso dos EUA, expôs a situação com enorme clareza: «Os teóricos do FMI insistiram que a privatização conduziria automaticamente a uma melhor gestão das indústrias e à redução das despesas do governo. Também fizeram finca-pé na necessidade de gastar menos em educação, bem.estar social, saúde, etc. O FMI não apenas lançou os líderes da Rússia na ilusão de que esmagar a inflacção levaria automaticamente ao crescimento, como porta-vozes do FMI também alimentaram a falsa ideia que se as coisas corressem mal haveria um monte de dinheiro no sistema financeiro mundial para resgatar os russos». Uma vez mais a fórmula do FMI (que não fez nada para melhorar a qualidade de vida dos cidadãos russos, mas justamente o contrário) teve os resultados habituais: os preços aumentaram, os salários caíram, e caíram a despesa e o financiamento público.
A despesa com a saúde diminuiu na maioria dos países mais pobres do Mundo desde a década de 1980. Algumas melhorias importantes neste campo, adquiridas com considerável esforço nas décadas de 1960 e 1970, reverteram ao seu estado original ou são estagnadas em muitos países desde a década de 1980, quando a dívida começou a converter-se no problema mais garve dos países em desenvolvimento. Não obstante os vertiginosos avanços da medicina, o número de crianças que morrem antes de fazer 5 anos aumentou em muitos países endividados para níveis elevadíssimos, como no Zimbabué, Zâmbia, Nicarágua, Chile e Jamaica, depois de décadas de resultados cada vez mais incentivadores.
Os salários reais na maioria dos países africanos foram reduzidos em 50%-60% desde o início de 1980.
Em conjunto com os maiores recursos científicos e técnicos e os maiores avanços em organização social que a Humanidade já teve, 2/3 dos habitantes dos habitantes do nosso maltratado planeta são pobres e mais de 1000 milhões de pessoas convivem diariamente com o fantasma da má nutrição e da morte por fome.
A economia transformou-se numa ciência sem consciência ao serviço dos interesses de muito poucos e contra a grande maioria.
A crise está a ser devastadora, não para os milionários de Wall Street mas sim, e sobretudo, para os mais débeis. os centros de poder financeiro estão a transferir com grande facilidade para a economia real os seus problemas sem que o controlo democrático das instituições públicas o impeça.
Todo o Mundo sabe, queira admiti-lo ou não, que o modelo económico agoniza, mas ninguém sabe o que virá depois, mas o 1º passo já foi dado: a crise actual significou para muitos, inexplicavelmente ainda não para todos, a perda de fé no mercado e na eficácia da mão invisível que por artes mágicas regula a economia como se de um ecossistema perfeito se tratasse.
Se para resolver este problema não redesenharmos o modelo arruinado da civilização consumista manteremos as economia s afuncionar durante algum tempo, até ao cataclismo seguinte, à custa de ter afundado povo no desespero.
Em todo o Mundo a ideia da implementação de uma taxa sobre as transacções financeiras ganha terreno. Trata-se de uma medida justa que poderia gerar milhares de milhões de euros para aliviar a crise entre aqueles que mais sofrem, combater flagelos como a fome no Mundo e fazer frente aos efeitos adversos das alterações climáticas. Uma pequena taxa que significará pouco para instituições financeiras mas que implica poder-se contar com recursos impensáveis até agora para combater alguns dos problemas mais vergonhosos do Mundo.
E de que valor estamos a falar para estes recursos? Num valor arrepiante de, nem mais nem menos, 300 000 milhões de euros anuais adicionais para combater a pobreza. São cada vez mais os defensores desta ideia e cada vez têm mais dificuldade os seus detracores, como a Admnistração do Presidente Obama, para justificar a sua postura.
Ocorrem todos os dias milhões de transacções entre as instituições financeiras. Como já vimos, muitas dessas transacções são directamente prejudiciais para a economia mundial e para o bem-estar geral. Será realmente tão disparatado solicitar esta insignificante taxa? Não deve ser, quanto muitos e notáveis economistas, como os prémios Nóbel Joseph Stigliz e Paul Krugman, o director do Earth Institue, Jeffery Sachs, e mais 1000 economistas de todo o Mundo aderiram a esta petição.
Segundo as estimativas, um imposto de cerca de 0,05% poderia gerar 520 000 milhões de euros. Este imposto poderia ser a alavanca que permitiria resolver a maioria dos grandes problemas do nosso Mundo, e tudo isto sem qualquer custo para os cidadãos comuns, recaindo o peso - muito, muito leve - da medida entre aqueles que mais têm, que mais açambarcam e que são os causadores directos da situação actual.
No entanto, e de momento, as coisas estão a ir numa direcção muito diferente. Além disso, seguindo as regras do FMI e das suas instituições irmãs, foi iniciado internacionalmente um percurso pela austeridade e pela suposta competitividade que trará consigo, e que complica cada vez mais a situação para os cidadãos comuns. Um país anuncia uma descida dos salários e das despesas sociais de 20%, e depois há outro que, para não ficar atrás e, sobretudo, para poder colocar a sua dívida pública no mercados, anuncia que o fará com 30% de redução, e certamente haverá um terceiro que se apresse a implementar medidas ainda mais rigorosas.
Esta política de austeridade não pode criar outra coisa que não um ciclo deflaccionista que agravará a crise e dificultará a recuperação; quando se aperceberem do erro, os Estados já não poderão salvar os bancos à custa de milhões, porque simplesmente já não haverá dinheiro para o fazer.